domingo, 31 de agosto de 2014

O som da metralha

Dapieve: repertório das duas grandes guerras (Dapieve: repertório das grandes guerras (Dapieve: Lembranças das grandes guerras (U.S National Archives)))
Um repertório bélico reúne lembranças das duas grandes guerras mundiais

Arthur Dapieve
Arthur Dapieve Foto: O Globo
O mês que se encerra deu início a um período singular para quem se interessa pelas duas guerras mundiais. Vai de 12 de agosto deste ano — centenário da invasão da Sérvia pelo Império Austro-Húngaro — a 9 de agosto do ano que vem — septuagésimo aniversário da bomba jogada pelos EUA sobre Nagasaki. É como se esses 362 dias comprimissem todas as lembranças da Primeira e da Segunda Guerras.


Aliás, há quem fale num único conflito 1914-1945, ou seja, numa única grande guerra mundial com uma trégua de 21 anos no meio. Presente à Conferência de Versalhes, Lorde Keynes anteviu que uma segunda guerra surgiria de dentro da primeira por causa das sanções econômicas impostas à Alemanha. Além de programas de TV, filmes, livros e reportagens, a música também permite rememorar as duas guerras.

Não é difícil organizar um repertório bélico. Dele podem constar, por exemplo, as duas sinfonias em que Villa-Lobos celebrou a participação brasileira na Primeira Guerra e as três sinfonias que Shostakovich estreou durante a Segunda Guerra, em particular aquela dedicada à sua cidade natal, a sitiada Leningrado. Podem constar a big band de Glenn Miller, desaparecido num voo sobre o Canal da Mancha em 1944, ou a cantora popular Vera Lynn, citada na ópera-rock “The wall”, do Pink Floyd. Graças a Roger Waters muita gente se lembra de Dame Vera Lynn, que está viva, aos 97 anos.

Há ainda trilhas prontas para consumir. Em 2011, já no embalo do centenário de início da Primeira Guerra, o barítono Simon Keenlyside e o pianista Malcolm Martineau gravaram “Songs of war” para a Sony. O CD levou o prêmio da revista “Gramophone” na categoria vocal solo. Onze de suas 29 canções em língua inglesa foram compostas por George Butterworth entre 1911 e 1912, a partir dos poemas de “A Shropshire lad”, de A.E. Housman, publicados no final do século anterior. Seu pessimismo calou fundo em 1914. Na delicada “The lads in their hundreds”, os personagens são centenas de rapazes “que nunca ficarão velhos”. Butterworth também nunca ficou velho: morreu na Batalha do Somme, em 1916, aos 31 anos. Seu corpo jamais foi identificado.

A música que mais me impressionou no CD de Keenlyside e Martineau, porém, foi composta por outro inglês, Gerald Finzi, sobre um poema de Shakespeare. Chama-se “Fear no more the heat o’ the sun” e já surge como uma canção, entoada por Guidério e Arvirago no quarto ato de “Cimbeline”, durante o funeral do príncipe inimigo Cloten. É uma comovente — e, em se tratando de Shakespeare, irônica — oração por um guerreiro.

Na tradução de Barbara Heliodora, a primeira estrofe diz: “Não temas do sol o calor/ E nem os ventos do inverno,/ Findo na terra o teu labor/ No lar terás salário eterno./ Nem a beleza e nem dinheiro/ É mais no pó do que o lixeiro.” O próprio Finzi posteriormente fez uma versão orquestral, mas apesar de toda aquela força dramática das cordas, o barítono e o piano passam melhor a solidão de cada morte.

“Fear no more the heat o’ the sun” faz parte de “Let us garlands bring”, ciclo de cinco canções extraídas por Finzi das peças “Os dois cavaleiros de Verona”, “Noite de reis” (duas) e “Como quiserem”, além de “Cimbeline”. Finzi as escreveu entre 1929 e 1942. Seus temas são amor e morte. O compositor conhecia de perto essa combinação. Perdeu muitos entes queridos antes de completar 18 anos. O pai se foi em 1909. Um irmão morreu de pneumonia em 1912. Outro irmão se suicidou em 1913. O terceiro morreu na guerra em 1918. No mesmo ano, também em ação, foi morto Ernest Farrar, seu primeiro professor de música. Logo, suas obras são de uma enorme melancolia.

Finzi não foi o único a musicar as letras de Shakespeare para as canções das peças (diferentemente das criações populares citadas aqui e ali, as dele eram cantadas na íntegra). Muitos as musicaram, sim, desde os tempos do dramaturgo. Sobrevivem 11 dessas versões renascentistas. Contemporâneo de Finzi, Roger Quilter compôs quatro ciclos de canções de Shakespeare. Sua versão para “Fear no more the heat o’ the sun” está no segundo deles, opus 23, publicado em 1921. É uma bela música, sim, mas a versão de Finzi costuma ser a preferida, inclusive por mim. Os estilos são bastante distintos. Finzi é mais “romântico”, solene; Quilter, mais “renascentista”, sereno.

Em junho, a soprano Anna Prohaska e o pianista Eric Schneider lançaram pelo selo Deustche Grammophon o CD “Behind the lines”, título que faz um trocadilho entre as linhas de uma pauta musical e as linhas inimigas. Eles preferiram gravar a “Fear no more the heat o’ the sun” de Quilter. As 25 canções são cantadas em quatro idiomas: inglês, alemão, francês e russo — “Polyubila ya na pecal’ svoyu”, de Rachmaninoff, está entre os pontos altos do disco. Elas são mais variadas estilisticamente por se espraiarem do renascentista Michael Cavendish ao contemporâneo Wolfgang Rihm, passando por Beethoven, Schubert e Mahler, entre outros. Vão aí quatro séculos de música, pois as guerras são mais características da “natureza humana” do que a paz.


http://oglobo.globo.com/cultura/o-som-da-metralha-13762576

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