segunda-feira, 30 de junho de 2014

As Cartas.


Não sei em qual lugar da montanha estou, mas a fé não faltará. 


Janne Lopes*
Há alguns dias, ao acordar, como de costume, falei com Deus, levantei-me e fui até a janela. Quando a abri, vi que o dia estava chuvoso. Um dia frio. Fiquei lá por alguns minutos, olhando as folhas caídas no chão molhado e ouvindo o barulho da rua. A brisa fria que encontrava o meu rosto trazia o cheiro de terra molhada, cheiro de paz. As plantas estavam cobertas de orvalho. As gotas d'água, que caiam do telhado, faziam música. Desse tipo de música que toca a alma da gente. Os pássaros estavam quietos... quase um convite a ficar quieta também no meu canto. Os pensamentos foram longe. O orvalho, o vento, os sons, os pássaros... Um dia vestido de água. Vez em quando faz bem ter dias assim. Eu sei que o sol está lá.

De repente, o cheiro de café desviou meus pensamentos. Apressei-me para o banho. Enquanto eu vestia uma roupa, meus olhos passearam pelo quarto... A velha caixinha de madeira num canto do armário pedia para ser aberta. A caixinha onde guardo as cartas que recebi de minha avó.

Sem dúvida,  era um dia para recordar. Um dia perfeito para ler cartas.  Após tomar o café e participar da conversa que acontecia na cozinha, voltei para o quarto, peguei a caixinha e acomodei-me na cama. Algumas cartas, pétalas de flores secas e um terço com algumas contas quebradas, de muitas Ave-Marias, de uma vida de oração. Os papéis velhos, amarelados pelo tempo, já impregnados com o cheiro da madeira são provas de um amor que não fenece, de um coração que ficou aqui. Testemunhas do que está gravado em outra caixinha... Esta que bate, que dói e que cabe um mundo. São provas de que a tinta das esferográficas foi além.

Minha avó morava no interior do estado e eu fui estudar na capital. Não tínhamos telefone. Nesse tempo, esse aparelho fantástico, que nos faz ouvir a voz de quem está longe, era um artigo de luxo. Na falta de telefone, nossas vozes ecoavam nos papéis e adentravam nossas almas. Eu sentia o cheiro do talco que ela usava, misturado às pétalas que enfeitavam as cartas. Era uma espécie de ritual... um desejo de perfumar a vida, as dores, as alegrias, a saudade... um jeito de criar a presença. Ainda posso ouvir a sua voz tão querida em cada palavra escrita, do jeitinho que ela sabia. Pouco sabia, mas me bastava. Não entendia muito de gramática. Entendia bem de costurar, de cuidar... um talento incrível. É um mistério o sentimento que faz com que nos encantemos por outra vida como se fosse a nossa. Que nos faz felizes como a flor que treme orvalhada. Ser alimento. Isso é grande.

Há muita beleza no ato de enviar e receber cartas.  Às vezes, as notícias eram boas,  outras vezes não. Boas ou ruins, as lágrimas sempre me faziam companhia. Nesses momentos, eu partia para onde está o meu coração, como faço agora. Entendo bem o que disse Rubem Alves: "... Cartas são escritas não para dar notícias, não para contar nada, mas para que mãos separadas se toquem ao tocarem a mesma folha de papel". Isso era tudo. É tudo.Aleatoriamente, peguei uma carta. É uma carta muito especial, de um tempo de muito desânimo. Eu pensava em desistir. Estava longe de casa e ainda pouco acostumada à vida na capital. Um peixe fora d'água. Uma menina, apenas uma menina querendo voltar para aquele lugar onde era tudo mais fácil, onde havia o calor do colo materno, o conforto da segurança. Todo esse sentimento era enviado para ela através das cartas. E eu rezava para que a resposta fosse: "Volte". Pelo contrário, ela dizia: "Fique aí. E seja forte". Uma carta repleta de mil palavras de força e incentivo. Ela tinha razão. Eu sentia medo do novo, das mudanças. Chorei muito, mas fiquei e enfrentei cada medo com coragem. Tantos ensinamentos... Minha avó era uma mulher cheia de virtudes. Ler: "Minha filha, não há montanha alta demais quando botamos fé na subida. Nunca desista de lutar. Tenha coragem. Você pode", era tudo que eu precisava. Ela acreditava em mim mais do que eu. Assim, tive que aprender a acreditar também. 

Hoje, eu sei... o véu que veste a minha alma é de esperança. Foi costurado cuidadosamente pelo tempo das dificuldades, das alegrias e, sobretudo, pelas lições aprendidas em um “livro”, de único exemplar, chamado "Maria, minha avó". Nesse "livro", aprendi que o amor é isto: colocar em meu peito um coração que não é o meu... O meu está lá, está ali... E por estar, enche-me de vida.
Carrego em mim tudo o que aprendi com ela, o valor da gratidão, da  amizade, do amor, do respeito, da honestidade e da solidariedade. Minha avó falava da importância de olhar para os outros e mostrar o coração. De dar lugar ao amor, à confiança, à segurança... Ela dizia que pelo caminho eu encontraria pessoas de todos os tipos, algumas me fariam bem, outras não. E que a justiça divina não falha, que a paciência e o tempo trazem todas as respostas, colocam as coisas no lugar.

Reler cada palavra desta carta me fez recordar dos dias lindos, dos abraços, do silêncio que falava, do olhar cuidadoso. Alimentou em mim a certeza de que dias muito mais lindos virão. A certeza de que não paro aqui. Jamais desistirei de lutar. Não sei em qual lugar da montanha estou, mas a fé não faltará. Se, por qualquer que seja a razão, eu escorregar e descer um passo, em seguida subirei dois. É para o alto que vou. É para frente que caminho.

As cartas estão todas aqui... As que leio e as que sinto, guardadas em suas respectivas caixinhas...  Sempre serão lidas, sempre serão força, sempre serão voz, sempre serão luz... Testemunhas. O tempo não apaga.
E o dia chuvoso e frio fora aquecido... Toquei as mãos daquela que é amada, que se foi, que está!

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