sábado, 15 de março de 2014

Tráfico de órgãos e doação de órgãos

A diferença é que, no último, o corpo humano é colocado como expressão do amor.

Fazer do corpo um instrumento de exploração fere a dignidade humana.
Por Dom Demétrio Valentini*

Um dos bons ofícios da Campanha da Fraternidade é estimular nossa reflexão. A questão do tráfico humano nos leva a ponderações sobre o nosso corpo. Ele está no centro da questão do tráfico humano: está em jogo o corpo. Ele sofre a exploração.

O corpo é, ao mesmo tempo, expressão visível da vida humana e condição indispensável de sua existência. Se o corpo exerce corretamente suas funções, a vida flui, exuberante. Se o corpo tem dificuldade de funcionamento, a vida padece. O atestado de morte mais radical é o médico constatar a "falência múltipla dos órgãos". 

Por mais que cultivemos a certeza de uma sobrevida, que ultrapasse nossos condicionamentos físicos, a vida humana nunca deixa de se expressar através do corpo. Ele é um "organismo" integrado de forma admirável e prodigiosa, com todos os seus “órgãos” funcionando a serviço do prodígio maior, que é a vida humana.

Os múltiplos órgãos do corpo funcionam a serviço da vida humana. O cuidado com o corpo ultrapassa sua consistência física. Sua finalidade não se detém no corpo. Ele se posiciona em direção à vida. 

O corpo está em função da vida. E a própria vida humana encontra seu sentido mais profundo quando ela também encontra uma finalidade maior, que a justifica plenamente. “Ninguém vive para si mesmo”, alerta São Paulo. Nossa vida também não é “auto-referencial”. Ela gira em torno de um mistério maior.

Aí entra uma questão central que a Campanha da Fraternidade levanta neste ano. Como usar do corpo, para que ele esteja plenamente a serviço da vida. Salta aos olhos a perversidade de quem se julga no direito de dispor de órgãos humanos, fazendo deles mercadoria, colocada à venda para fins lucrativos.

Desta maneira, se explora o corpo humano, com os expedientes usados para a obtenção dos órgãos que são vendidos como mercadorias, pervertendo sua finalidade, fazendo do corpo um instrumento de exploração, ferindo a dignidade humana. Tanto a finalidade, como os procedimentos para obtenção forçada de órgãos, se tornam, assim, desumanos e anti-éticos. 

Quando, porém, a pessoa humana, consciente do significado transcendente de sua vida, ela própria decide colocar gratuitamente seus órgãos, que permanecem sempre a serviço de sua vida pessoal, para estarem eventualmente a serviço da vida de outras pessoas, que estiverem na dependência de receber tais órgãos, aí muda de sentido, radicalmente. 

Pois neste caso, de doação livre dos órgãos, eles são colocados a serviço da vida humana. Assim, a doação livre dos próprios órgãos, para ficarem à disposição de pessoas que necessitam deles, é um gesto que toma sentido na finalidade suprema da existência humana, que consiste em doar a própria vida por amor. Para que a doação de órgãos tenha este sentido, é preciso que seja feita em plena liberdade. Como fez Jesus. Ele enfatizou claramente: “Ninguém tira minha vida, eu a dou livremente”.(Jo 10,18) 

O corpo humano pode, assim, ser colocado como expressão do amor, que justifica a doação total da própria vida. É isto que está na origem do sacramento da Eucaristia. Tendo assumido um corpo humano, o Filho de Deus fez deste corpo, o sinal maior de seu amor. 

A quaresma recorda e revive este gesto maior de Cristo. Ele entregou seu corpo para expressar seu amor por nós!
CNBB, 13-03-2014.
*Dom Demétrio Valentini é bispo de Jales (SP).

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